Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Inclusão Social: é possível! (?)

Há poucos dias estive num evento que mostrava filmes tratando da inclusão social de pessoas com deficiência. Tive, então, a oportunidade de conhecer (e me encantar!) a Adaptative Design Boards, empresa que projeta objetos destinados à melhoria da condição de vida das pessoas com qualquer tipo de deficiência. O mais interessante é que eles utilizam um material cujo destino era o lixo: papelão. Confeccionam mesas, cadeiras, escadas, enfim, tudo para facilitar a vida daquelas pessoas. E o melhor: elas não têm de pagar por esse serviço!
Pude, também conhecer a história do menino Samuel Habib (7 anos), que, portador de paralisia cerebral, frequenta uma escola comum e convive com crianças de sua idade. Samuel foi totalmente acolhido pelas professoras e pelos coleguinhas de turma. Eles afirmam que Samuel sempre ganha deles quando o assunto é corrida. "Acho que a cadeira dele chega a 140 km/h", disse um coleguinha referindo-se à cadeira de rodas de Samuel. Samuel é uma criança feliz.
Muitas lágrimas depois, vi que Samuel e várias outras crianças dos Estados Unidos participam do PEI - Programa Educacional Individualizado. Essas crianças têm o conteúdo programático adaptado às suas limitações. Semanalmente, professoras e terapeutas se encontram para discutir o que houve de progresso ou estagnação na semana da criança.
E aqui no Brasil? A inclusão social acontece? De que maneira? Às custas de quê? De quem? Existe preparação prévia para receber essas pessoas? Existe acessibilidade? Existe a formação apropriada dos professores que acompanharão essas crianças?
Após a exibição dos filmes, houve um debate sobre o tema. Uma senhora, muito bem conceituada no meio educacional e com muitos argumentos contundentes, entre outras coisas, afirmou que, para que haja uma verdadeira inclusão, faz-se necessária uma reforma em todo o sistema educacional do país.
Ora, faça-me o favor! É claro, certo como 2 e 2 são 4, que isso nunca vai acontecer! Nunca foi, não é e nunca será interessante para nosso país formar cidadãos de verdade, cabeças pensantes com o mínimo de cultura que seja. Bom é assim: país em que se troca voto por dentadura, leite, pão e botijão de gás. País em que se vota em palhaço (aquele de verdade, que pinta o rosto...) para deputado federal (Até hoje, minha dúvida é a de quem são os verdadeiros palhaços...)
Para que haja inclusão, é preciso contar com o que temos, com a estrutura educacional que se apresenta aí, pra quem quiser ver, com toda a sua imperfeição e capenguice.
Para que haja inclusão, é preciso BOA VONTADE.
É preciso que se faça agora, imediatamente, aquilo que já deveria estar acontecendo há muito tempo. Ser diferente é normal. Não é assim que dizem por aí? Então, falta praticar.
Fecho o texto apropriando-me de uma frase dita por outro palestrante, que julguei ser a mais feliz da noite: "Educação inclusiva é redundância. A educação tem de ser para todos."
E tenho dito.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

15 anos

Cresci numa época em que aquelas festas de debutantes, badaladíssimas, caíram em desuso. Hoje, elas estão aí com força total, mas na década de 80, pelo menos na cidade em que vivia, não era comum festa de 15 anos com mocinhas dançando valsa e direito à troca de vestidos 2 ou 3 vezes na noite.
A mim, me foi perguntado: "festa ou viagem?" Viagem, claro. Fui para a óbvia Disneyworld, em Orlando, com um grupo de amigas. A viagem foi maravilhosa e servirá de tema para outro texto.
Bem, na época de meu "debut", minha escola de inglês resolveu promover uma festa de Halloween. E, naquele ano, que beleza, a festa aconteceria exatamente no dia 31 de outubro, dia das bruxas e, sem relação alguma entre as datas, dia do meu aniversário. (Só abrindo um parêntese, meus alunos quando descobriam a data do meu aniversário, falavam sem a menor parcimônia: "Ah, agora entendemos tudo..." Engraçadinhos...)
Pois então: teria uma festa de 15 anos sem ter gastado um único tostão para isso! E o melhor: o menino mais fofo, mais gato, mais lindo estaria lá. Na verdade, ele não era essa coca-cola toda, mas eu era verdadeira e completamente apaixonada por ele. E parecia ser correspondida!
Na tal festa, ficamos juntos o tempo todo, eu e meu sonho de consumo. Conversamos e dançamos. Conversamos mais que dançamos, é verdade. Até que o DJ colocou uma coletânea de músicas lentas. (Na época, música lenta era sinônimo de dançar abraçadinho e, com sorte, até contribuía para rolar um beijinho... Hoje, os beijinhos e beijões rolam com maior facilidade.)
Meu querido me chamou para dançar. Até hoje lembro da música "Glory of Love", do Peter Cetera (adoro!). Na sequência, veio a música "Crazy for You", da Madonna (detesto!). Inventaram uma tal dança da vassoura e uma menina assanhadinha, que em comum comigo só tinha o sonho de consumo, me entregou a vassoura para que ela passasse a dançar com meu príncipe. Eu, que sempre fui supertímida, me senti a própria "Carrie, a Estranha" com uma vassoura na mão, no meio do salão. Tinha a sensação de que todos me olhavam.
Como uma menina mimada, não dei continuidade à brincadeira. Larguei o veículo e fui sentar. Percebi que ninguém estava brincando, só eu e a menina.
Qual não foi a minha surpresa quando olhei para meu "menino dos olhos". A menina assanhadinha tascou-lhe um beijão daqueles! E o pior de tudo: ele correspondeu! Naquele momento, senti meu coração ficar do tamanho de uma ervilha. Ervilha partida!
Decidi ir embora imediatamente. Meus olhos não conseguiam manter-se enxutos. O menino, que por muitos e muitos anos continuou sendo meu sonho de consumo, ainda veio até mim, me pedindo para ficar. Não obteve sucesso na tentativa.
Meu coração estava partido.
Meu aniversário de 15 anos foi o pior que eu poderia ter tido.
Minha primeira desilusão amorosa.
Nesse dia, tive a certeza fatídica: estava tornando-me adulta.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Raciocínio Rápido

Meu anjo caçula, como a maioria dos meninos de sua idade, é louco por super-heróis.
(Quando eu estava grávida e descobri que era um menino, disse pra quem quisesse ouvir que meu filho não ia se ligar em dinossauros. Super-heróis, tudo bem! Acho uma bobeira tão grande esse culto a esses répteis gigantescos! Não vejo a menor graça em filmes, brinquedos e desenhos de dinossauros. Tenho que confessar que é a tal estética falando mais alto. Acho os dinos horrorosos! Enfim, só pra queimar minha língua, além dos super-heróis, já me peguei comprando dinossaurinhos e dinossaurões para o pequeno, pois o bonitinho adora os feiosos...)
Bem, voltemos aos super-heróis.
Um dos heróis da nova geração chama-se Ben 10. É um garoto que tem o poder de se transformar em diversas figuras prontas para combater o mal. Meu anjo adora!
Há alguns meses, meu pai precisou fazer uma cirurgia no fêmur e, por isso, teve que "reaprender" a andar. No início, usava um andador; depois de 2 meses, uma bengala. Tipo lorde inglês, sabe?
Outro dia desses, ao chegar à casa de meus pais acompanhada dos 3 anjos, meu pai vira-se para meu filho e simula diversos golpes de caratê. O menino, meio que sem entender o propósito da encenação, continua olhando, sério. (Como sempre! Ele já deixou muita gente boa desconsertada, após uma sessão de gracinhas, devido à seriedade de sua expressão...)
E o avô continua golpeando o ar. Até que fala: "Oi! Eu sou o Ben 10!"
O menino, mais que rapidamente, vira-se para o avô e dispara: "Ê, vô! Lógico que você não é o Ben 10! Eu sou o Ben 10! Você é o Ben-gala!"]
O avô precisou sentar-se, pois só a bengala não foi suficiente para segurar sua gargalhada.

(Brasília, 26/6/2011)

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Indez


O texto que trago hoje é um trecho do livro Indez, de Bartolomeu Campos de Queirós.
A prosa poética de Bartolomeu mostra toda a sua sensibilidade ao relatar a vida do menino Antônio, nascido e criado numa família simples no interior das Minas Gerais.
A propósito, o escritor estará em Brasília, no dia 23/3/2011, às 19h30, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) no projeto Escritores Brasileiros, para uma conversa informal com seus leitores.
Estarei lá com certeza!

Se ganhava em idade, Antônio também crescia em amor. Agora com mais de um ano e corpo firme, ele estendia os braços se oferecendo para todos. Não estranhava ninguém. Gostava de cerimônias. dava a pensar que ele vivia sempre com muita saudade, mesmo dos desconhecidos. Sem quase chorar, acariciando com a pontinha do dedo os olhos, os ouvidos, a boca, o nariz das pessoas que o carregavam, Antônio crescia manso.
Aqueles que tinham olhos de ver à primeira vista sentiam que era um menino desarmado e feito só para o carinho. Sua maneira de olhar, seu jeito de se oferecer ou se encostar, seu modo de se aninhar nos braços, davam nas pessoas uma vontade muito forte de fazê-lo sumir entre carinhos. Apertá-lo em abraços e escondê-lo no coração. Parecia um amor de inveja. Todos queriam era ser amados como ele.
Mesmo tão carinhosos e de doçura transparente, ninguém se arriscava a chamá-lo de Toninho, Tonho ou outro apelido qualquer. Falavam Antônio, com a boca cheia. Falavam o nome por inteiro, como que preservando tudo que era dele, sem desejo de reparti-lo em pedaços.
Se foi nome dado às pressas, com receio do limbo, era em homenagem também a um Santo querido. E esse nome passou a ser o único que servia para aquela meiguice de menino, nascido apressado, adiantado, mas resistente à morte. E ninguém sabia se ele parecia com o Santo ou com o Menino que estava nos braços do Santo. Essa dúvida aproximava Antônio dos anjos.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Natal na Barca


Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos!... Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Texto extraído do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67.


domingo, 12 de dezembro de 2010

Meu Ideal Seria Escrever...


Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Contato Imediato

Os Tribalistas

Peço por favor
Se alguém de longe me escutar
Que venha aqui pra me buscar
Me leve para passear

No seu disco voador
Como um enorme carrossel
Atravessando o azul do céu
Até pousar no meu quintal

Se o pensamento duvidar
Todos os meus poros vão dizer
Estou pronto para embarcar
Sem me preocupar e sem temer

Vem me levar
Para um lugar
Longe daqui
Livre para navegar
No espaço sideral
Porque sei que sou

Semelhante de você
Diferente de você
Passageiro de você
À espera de você

No seu balão de são joão
Que caia bem na minha mão
Ou numa pipa de papel
Me leve para além do céu

Se o coração disparar
Quando eu levantar os pés do chão
A imensidão vai me abraçar
E acalmar a minha pulsação

Longe de mim
Solto no ar
Dentro do amor
Livre para navegar
Indo para onde for
O seu disco voador