Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Natal na Barca


Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.

O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.

Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio.

Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.

A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o. rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água.

— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.

— Mas de manhã é quente.

Voltei-me para a mulher que embalava a criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa dignidade.

— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.

— Quente?

— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?

Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:

— Mas a senhora mora aqui perto?

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...

A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.

— Seu filho?

— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.

— É o caçula?

Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.

— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.

Joguei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.

— E esse? Que idade tem?

— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os braços. E voou.

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não tinha forças para rompê-los.

— Seu marido está à sua espera?

— Meu marido me abandonou.

Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.

— Há muito tempo? Que seu marido...

— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.

Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.

— A senhora é conformada.

— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.

— Deus — repeti vagamente.

— A senhora não acredita em Deus?

— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...

Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.

Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim

— Estamos chegando — anunciou.

Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:

- Chegamos!... Ei! chegamos!

Aproximei-me evitando encará-la.

— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse atropeladamente, estendendo a mão.

Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.

— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.

— Acordou?!

Ela sorriu:

— Veja...

Inclinei-me. A criança abrira os olhos — aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.

— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.

Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.

Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.

Texto extraído do livro “Para gostar de ler – Volume 9 – Contos”, Editora Ática – São Paulo, 1984, pág. 67.


domingo, 12 de dezembro de 2010

Meu Ideal Seria Escrever...


Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse -- "ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é mesmo muito engraçada!".

Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.

Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor, se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha história.

E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".

E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história...".

E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Contato Imediato

Os Tribalistas

Peço por favor
Se alguém de longe me escutar
Que venha aqui pra me buscar
Me leve para passear

No seu disco voador
Como um enorme carrossel
Atravessando o azul do céu
Até pousar no meu quintal

Se o pensamento duvidar
Todos os meus poros vão dizer
Estou pronto para embarcar
Sem me preocupar e sem temer

Vem me levar
Para um lugar
Longe daqui
Livre para navegar
No espaço sideral
Porque sei que sou

Semelhante de você
Diferente de você
Passageiro de você
À espera de você

No seu balão de são joão
Que caia bem na minha mão
Ou numa pipa de papel
Me leve para além do céu

Se o coração disparar
Quando eu levantar os pés do chão
A imensidão vai me abraçar
E acalmar a minha pulsação

Longe de mim
Solto no ar
Dentro do amor
Livre para navegar
Indo para onde for
O seu disco voador


sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Canção na Plenitude

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.


O texto acima foi extraído do livro "Secreta Mirada", Editora Mandarim - São Paulo, 1997, pág. 151.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Se eu fosse um padre

Se eu fosse um padre, eu, nos meus sermões,
não falaria em Deus nem no Pecado
— muito menos no Anjo Rebelado
e os encantos das suas seduções,

não citaria santos e profetas:
nada das suas celestiais promessas
ou das suas terríveis maldições...
Se eu fosse um padre eu citaria os poetas,

Rezaria seus versos, os mais belos,
desses que desde a infância me embalaram
e quem me dera que alguns fossem meus!

Porque a poesia purifica a alma
...e um belo poema — ainda que de Deus se aparte —
um belo poema sempre leva a Deus!


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Eu sei, mas não devia

Hoje, vou postar aqui um texto que adoro e que volta e meia me pego lendo novamente. Por muito tempo, esse texto correu a internet como sendo da autoria de Clarice Lispector. Mas não é. É de Marina Colasanti, escritora maravilhosa, que vale a pena ser "lida" e "relida"...


Eu sei que a gente se acostuma.

Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.

A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.

Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.

A gente se acostuma para poupar a vida.

Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.


 
Marina Colasanti nasceu em Asmara, Etiópia, morou 11 anos na Itália e desde então vive no Brasil. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Recebeu o Prêmio Jabuti com Eu sei mas não devia e também por Rota de Colisão. Dentre outros escreveu E por falar em Amor; Contos de Amor Rasgados; Aqui entre nós, Intimidade Pública, Eu Sozinha, Zooilógico, A Morada do Ser, A nova Mulher, Mulher daqui pra Frente e O leopardo é um animal delicado. Escreve, também, para revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna.


terça-feira, 9 de novembro de 2010

A Pintora

Ganhei de presente de aniversário um livro da escritora Adélia Prado. Foi presente de minha amiga, a queridíssima Zózima, pessoa dotada de grande sensibilidade. Como disse a ela, eu já conhecia textos isolados de Adélia, mas nunca tive um livro para chamar de meu.  Agora tenho. Ganhei o último livro dela, chamado "A duração do dia". Gostei tanto que o devorei imediatamente, no exato momento em que o recebi.
Adélia é mineira, da cidade de Divinópolis e, como diz minha amiga, "a simplicidade de sua voz interior fala mais alto que os ruídos do mundo". Seus textos são carregados de sentimento, simplicidade e religiosidade.
Outra curiosidade é que Adélia mantém ao longo da vida o hábito de se reunir com suas amigas, às terças-feiras, para tomar chá e comer biscoitinhos e pães de queijo, sem falar na iguaria principal:  falar sobre poesia. Ela chama esse encontro de "Das terças". Isso tudo,  lá em Divinópolis!

Separei para o Palavra Pintada o poema "A Pintora". Espero que vocês gostem porque eu achei lindíssimo.

A Pintora

Hoje de tarde
pus uma cadeira no sol pra chupar tangerinas
e comecei a chorar,
até me lembrar de que podia
falar sem mediação com o próprio Deus
daquela coisa vermelho-sangue, roxo-frio, cinza.
Me agarrei aos seus pés:
Vós sabeis, Vós sabeis,
só Vós sabeis, só Vós.
O bagaço da laranja, suas sementes
me olhavam da casca em concha
na mão seca.
Não queria palavras pra rezar,
bastava-me ser um quadro
bem na frente de Deus
pra Ele olhar.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

As Duas Velhinhas

O texto a seguir chama-se "As Duas Velhinhas", de Cecília Meireles. Encontra-se no livro de poesias infantis da autora chamado "Ou Isto Ou Aquilo".
Não pode faltar em nossa estante pessoal...

Duas velhinhas muito bonitas,
Mariana e Marina,
estão sentadas na varanda:
Marina e Mariana.

Elas usam batas de fitas,
Mariana e Marina,
e penteados de tranças:
Marina e Mariana.

Tomam chocolate, as velhinhas,
Mariana e Marina,
em xícaras de porcelana:
Marina e Mariana.

Uma diz:"Como a tarde é linda,
não é, Marina?"
A outra diz: "Como as ondas dançam,
não é Mariana?"

"Ontem, eu era pequenina",
diz Marina.
Ontem, nós éramos crianças",
diz Mariana.

E levam à boca as xicrinhas,
Mariana e Marina,
as xicrinhas de porcelana:
Marina e Mariana.

Tomam chocolate, as velhinhas,
Mariana e Marina,
em xícaras de porcelana:
Marina e Mariana.



Toda vez que leio esse texto, devido ao ritmo que a autora deu ao poema, tenho a nítida certeza de que Marina e Mariana estão sentadas em cadeiras de balanço.

Vocês têm a mesma sensação?


sábado, 30 de outubro de 2010

Vai

Pra quem ficou curioso, aí está o texto "Vai", de Ivan Ângelo (aquele da sala de aula...)

Quer ir? Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma pessoa contra a vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira contra a gente mais tarde: não fui porque você não deixou, ou: não fui porque você chorou. Sabe, existem umas harmonias em que é bom a gente não mexer. Estraga a música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.
Eu compreendo, compreendo perfeitamente. Olha, e até admito: você muda pra melhor. Fora de brincadeira, acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso quando tava tentando te entender. É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não tem mais jeito, eu sou assim. Paciência.
Sabe por que eu digo que você muda pra melhor? Ele faz tanta coisa melhor do que eu! Verdade.
Tanta coisa que eu não aprendi por falta de tempo, de oportunidade — ora, pra que ficar me justificando?
Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é que é a verdade. Eu sei ver as qualidades de uma pessoa, mesmo quando é um homem que vai roubar minha namorada. Roubar não: ganhar.
Compara. Ele dança muito bem, até chama a atenção. Campeão de natação, anda de bicicleta como um acrobata de circo, é bom de moto, sabe atirar, é fera no volante, caça e acha, monta a cavalo, mete o braço, pesca, veleja, mergulha... Não tem companhia melhor.
Eu danço mal, você sabe. Não consegui ultrapassar aquela fronteira larga entre a timidez e a ousadia, entre a discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom bailarinos. Nunca fui muito além daquela fase em que uma amiga compadecida precisava sussurrar no meu ouvido: dois pra lá, dois pra cá.
Atravessar uma piscina eu atravesso, uma vez, duas talvez, mas três? Menino de cidade, e modesto, não tive córrego nem piscina. É com olhos invejosos que eu o vejo na água, afiado como se tivesse escamas.
Moto? Meu Deus, quem sou eu. Pra ser bom nisso é preciso ter aquele ar de quem vai passar roncando na frente ou por cima de todo mundo — e esse ar ele tem.
Montar? É preciso ter essa certeza, que ele tem, de que cavalo foi feito pra ser domado, arreado, freado, ferrado e montado. Eu não tenho. Não tá em mim. Eu ia montar como se pedisse desculpas ao cavalo pelo incômodo, e isso não dá, não pode dar um bom cavaleiro.
O jeito como ele dirige um carro é humilhante. Já viajei com ele, encolhido e maravilhado. Você conhece o jeitão, essa coisa da velocidade. Não vou ter nunca aquela noção de tempo, a decisão, o domínio que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei a volúpia de chegar rapidinho pelo prazer de estar a caminho. No amor também.
Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele tem isso, a certeza de que o homem é o senhor do universo, tudo tá aí pra ele. Quem me dera. Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do bicho, rasgando carne, quebrando ossos... Não, não tenho coragem.
Aí é que eu tou perdido mesmo, no capítulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi. Mas eu? Quantas vezes já levei desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late pra mim na rua, vou lá e mordo ele?
Eu não. Mudo de calçada.
Outra coisa: ele é mais engraçado do que eu. Fala mais alto, ri mais à vontade, às vezes chama até um pouco a atenção mas... é da idade. Lembra aquela vez que ele levou um urubu e soltou na igreja no casamento do Carlinhos? E aquela vez que ele sujou de cocô de cachorro as maçanetas dos carros estacionados na porta da boate? Lembra que sucesso? Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser engraçado assim. Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E mais bonito também.
Vai.
Olha, não quero dizer que o que eu vou falar agora tenha importância pra você, que possa ter influído na sua decisão, mas ele tem mais dinheiro também, você sabe. Ele tem até, sabe?, aquele ar corajoso dos ricos, aquela confiança de entrar nos lugares. Eu não. Muito cristal me intimida. Os meus lugares são uns escondidos onde o garçom é amigo, o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadradinho e me reserva o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito nenhum.
Ele é moderno, decidido. Num restaurante não te oferece primeiro a cadeira, não observa se você tá servida, não oferece mais vinho. Combina, não é?, com um tipo de feminismo. A mulher que se sente, peça o que quiser, sirva-se, chame o garçom quando precisar. Também não procura saber se você tá satisfeita. Eu sei que é assim que se usa agora. Até no amor. Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas cortesias.
Também não vou dizer que ele é melhor do que eu em tudo. Isso não. Eu sei por exemplo uns poemas de cor. Li alguns livros, sei fazer papagaio de papel, posso cozinhar uns dois ou três pratos com categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei uma ótima massagem pra dor nas costas, mastigo de boca fechada, levo jeito com crianças, conheço umas orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas carícias, minhas camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher.
E não sou rancoroso. Leva a chave para o caso de querer voltar.


(Ivan Ângelo. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994. p. 12-4.)

Agora me digam: é ou não é uma gracinha?
Beijão, pessoas ;)

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Quem é a Palavra Pintada

Meu nome é Bibiani Mesquita e desde sempre fui apaixonada pelas letras. Sou capaz de dar boas risadas e ir às lágrimas com um bom texto.
Certa vez, ainda professora de adolescentes, havia sobrado um tempo no final de uma aula, resolvi ler um texto para meus alunos. Um texto-surpresa, que eu também não conhecia, mas que sei lá por que motivo resolvi escolhê-lo. Era "Vai", de Ivan Ângelo. Ao final do texto, não só eu como vários alunos deixamos escapar discretas lágrimas. Foi uma experiência bem interessante, que deixou boas lembranças daquela época.
Bem, o nome "Palavra Pintada" buscou inspiração no grupo "Palavra Cantada", idealizado por Paulo Tatit e Sandra Peres, de quem sou absolutamente fã. De carteirinha. Fazem um trabalho poético musical para crianças maravilhoso.
A intenção deste espaço é divulgar textos, estejam eles em prosa ou em verso, músicas, biografias, livros e produtos. Tudo relacionado às letras, preferencialmente, as brasileiras, aliando-as à arte visual.
Espero que você nos visite para troca de experiências literárias, para dar sugestões de textos, livros e músicas ou apenas para se deleitar com as maravilhas que vai encontrar por aqui.

Aproveite porque a casa é sua!!!

A Casa é Sua (Arnaldo Antunes)

Não me falta cadeira
Não me falta sofá
Só falta você sentada na sala
Só falta você estar

Não me falta parede
E nela uma porta pra você entrar
Não me falta tapete
Só falta o seu pé descalço pra pisar

Não me falta cama
Só falta você deitar
Não me falta o sol da manhã
Só falta você acordar

Pras janelas se abrirem pra mim
E o vento brincar no quintal
Embalando as flores do jardim
Balançando as cores no varal

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora

A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio

Não me falta banheiro, quarto
Abajur, sala de jantar
Não me falta cozinha
Só falta a campainha tocar

Não me falta cachorro
Uivando só porque você não está
Parece até que está pedindo socorro
Como tudo aqui nesse lugar

Não me falta casa
Só falta ela ser um lar
Não me falta o tempo que passa
Só não dá mais para tanto esperar

Para os pássaros voltarem a cantar
E a nuvem desenhar um coração flechado
Para o chão voltar a se deitar
E a chuva batucar no telhado

A casa é sua
Por que não chega agora?
Até o teto tá de ponta-cabeça
Porque você demora

A casa é sua
Por que não chega logo?
Nem o prego aguenta mais
O peso desse relógio


Pra quem quiser ouvir essa música é só clicar no link: http://www.youtube.com/watch?v=sJ7OnkOoSR0


Vale muitíssimo a pena!!!


Abraços!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Convite

Olá, pessoal!
Este aqui é um espaço literário. Um lugar onde as palavras são o centro das atenções. Um lugar onde serão apresentados textos, em prosa e em verso, de vários escritores, principalmente os nacionais.
Gostaria de ressaltar que os textos são escolhidos aleatoriamente, de acordo com o que julgo ser um texto de qualidade, nada tendo a ver com meu estado de espírito. São simplesmente textos bem escritos, que traduzem a qualidade de grandes nomes da literatura.
Em muitos desses textos, é claro, esses autores dizem exatamente o que eu sempre tive vontade de dizer, mas nunca consegui. Em outros, dizem coisas que, talvez, jamais tivesse coragem de fazê-lo.
Enfim, sinta-se à vontade para comentar, mandar e-mails e sugerir textos e livros. Essa participação será muito bem-vinda aqui no Palavra Pintada.

Então, vamos lá!!! (pode-se clicar na imagem para ampliá-la)


Abraços e até o próximo encontro!!!